REVISTA ISTO É N° Edição: 2281 | 02.Ago.13 - 20:40 | Atualizado em 06.Ago.13 - 17:51
Oito meses depois de revelarem as cenas de maus-tratos contra crianças de menos de 5 anos praticados pela dona de uma escola infantil, em São Paulo, as famílias não conseguem superar o trauma da violência. E a professora não foi punida
Oito meses depois de revelarem as cenas de maus-tratos contra crianças de menos de 5 anos praticados pela dona de uma escola infantil, em São Paulo, as famílias não conseguem superar o trauma da violência. E a professora não foi punida
Nathalia Ziemkiewicz
"Ela apertava minha boca, me beliscava e batia para eu comer”, relata Felipe Moraes, 6 anos. “A tia Conceição era uma bruxa, mas a gente não tinha o telefone da polícia para contar o que ela fazia.” Sem tirar os olhos do tablet apoiado em seu colo, o garoto de bochechas coradas relata suas memórias da escola infantil de classe média alta Trenzinho Feliz. Boa parte de suas referências foi construída naquele endereço da Vila Mariana, zona sul de São Paulo, onde estava desde os seis meses de idade em período integral. Em dezembro do ano passado, uma funcionária revelou os maus-tratos aos quais as crianças ali matriculadas eram submetidas com a ajuda de uma câmera escondida. Enquanto alimentava os alunos grosseiramente, a diretora-pedagoga Conceição Tomaz Cruz dava puxões no cabelo e na orelha, tapa na cara, chacoalhões. Há relatos de que os obrigava a engolir o próprio vômito, provocado pelo excesso de comida. Felipe e seus colegas não podiam contar a ninguém, sob uma suposta ameaça da diretora em “cortar a cabeça dos pais”. Os mesmos que pagavam mensalidade superior a R$ 1.500, confiaram na tradição de 30 anos da instituição e nas credenciais acadêmicas de Conceição. Logo depois que o escândalo veio à tona, a escola foi fechada e a diretora foi denunciada por maus-tratos. Mas o terror que essas crianças tão pequenas passaram ainda reverbera na rotina das famílias, muitas sob tratamento psicológico e medicação. Há até quem mudou de cidade para tentar superar o trauma. Enquanto isso, a diretora aguarda a decisão da Justiça em sua casa, em São Paulo, e leva uma vida normal.
TRAUMA
Quando não comia, Felipe apanhava na escola. Seus pais, Evandro e Flavia Moraes,
não sabiam, mas estranhavam seu comportamento agressivo
“Como eu poderia desconfiar?”, afirma o gerente-comercial Evandro Moraes, pai de Felipe. “Meu filho sabia ler e escrever aos 5 anos, supus que a escola fosse competente.” A culpa permanece latente nesses pais – eles não se perdoam por ter ignorado ou subestimado os sinais de suas crianças (leia o quadro na pág. 62). Muitas delas se expressam por meio de comportamentos incomuns, outras pelo universo lúdico da fantasia. Felipe, por exemplo, adquiriu uma aversão a queijo e se tornou agressivo a ponto de dar socos e chutes. Já Rafaela, aos 5 anos, começou a brincar com as bonecas de um jeito diferente: dizia se chamar Conceição e fazia com que elas engolissem comida à força. A mãe, Priscilla Lomovtov, achou que era apenas fruto da imaginação. “A ideia de que aquilo acontecesse de verdade era surreal demais para acreditar.” Em outra casa, quando Luciana Lopes perguntava ao filho de 4 anos por que ele chegava da aula com fezes, Guilherme saía correndo e chorava. Segundo depoimentos, os alunos que se recusavam a fazer as refeições eram colocados de castigo por horas em um cômodo escuro e sem acesso ao banheiro.
O Ministério Público ofereceu uma denúncia de maus-tratos contra Conceição. Se condenada, a previsão é de que fique cerca de um ano presa. A decisão contrariou a vontade dos pais. Eles pediam que a diretora fosse incriminada por tortura, sujeita a uma pena muito mais rigorosa. ISTOÉ solicitou uma entrevista com a acusada, mas ela se negou. Seu advogado, Antônio Sidnei Ramos de Brito, afirma que a cliente está desempregada, já foi agredida fisicamente e não se sente preparada para falar. O processo corre em sigilo e a primeira audiência está marcada para janeiro de 2014, mais de um ano depois da data das cenas anexadas como prova. Só então serão feitas as avaliações psicológicas de 19 crianças por profissionais do Tribunal de Justiça – com resultados prejudicados, devido ao tempo entre os episódios e os exames.
O advogado Brito diz que Conceição assume o tapa na cara da aluna Valentina, com 2 anos na época, que aparece nas gravações que repercutiram em todo o País. Teria sido uma exceção, atitude “estúpida” de descontrole emocional, em virtude dos medicamentos para emagrecer que a diretora tomava. “Não vou admitir a transferência de responsabilidade”, afirma. “Alguns pais não tinham competência para a maternidade, talvez esses traumas tenham sido causados por eles, não pelo que alegam ter acontecido no colégio.” Consultada, a Secretaria Municipal de Ensino explicou que a licença de funcionamento da Trenzinho Feliz foi cassada em janeiro, mas Conceição poderia pedir autorização para abrir outra escola, solicitação essa que passará por uma avaliação. Enquanto isso, alguns pais mantêm um grupo na internet em que trocam informações sobre a evolução dos filhos. Há também processos cíveis pedindo ressarcimento das mensalidades pagas à escola como forma de indenização.
Especialista em crianças e adolescentes, a psicóloga Ceres Araújo analisa que a diretora era uma das figuras adultas mais presentes no cotidiano desses meninos e meninas. Um modelo hostil e assustador que provocou uma complicada inversão de valores. “Ela não só transformou a escola em um ambiente inseguro como abalou a confiança que tinham em vínculos muito próximos”, diz. Isso explica por que as crianças começaram a verbalizar situações apenas agora, meses depois de o episódio vir à tona. Há um longo período de estresse após o trauma. Felipe teve transtornos de adaptação na nova escola e estranhou que não havia castigo por lá. Rafaela ainda tem muitos pesadelos e dificuldade de fazer amizade. Guilherme teme ficar sozinho e desenvolveu um problema na tireoide. “A alimentação é uma das primeiras referências afetivas, mas essas crianças a associaram com sofrimento e vergonha”, afirma a presidenta da Associação Brasileira de Psicopedagogia, Quézia Bombonatto.
Segundo especialistas, os alunos da Trenzinho Feliz correm o risco de apresentar distúrbios alimentares, além de problemas com aprendizagem e relacionamento. A sorte, dizem os especialistas, está na “elasticidade” do sistema nervoso dos pequenos, capazes de reelaborar as experiências negativas com acompanhamento psicológico e referências amorosas. O impacto nos pais, no entanto, pode ser mais complexo. Evandro e Flavia Moraes confessam que a história quase os levou à separação e recorreram à terapia de casal. “Estávamos em pé de guerra, botando a culpa pelo que aconteceu no outro”, diz Flavia. Priscilla Lomovtov não se sente tranquila para deixar a filha com ninguém. Luciana Lopes toma remédios contra depressão, recebeu afastamento médico do trabalho e se mudou com a família para Guarulhos. “Eu fiquei com muita raiva, queria caçar aquela mulher de qualquer jeito, nunca mais tive paz de espírito.”
"Ela apertava minha boca, me beliscava e batia para eu comer”, relata Felipe Moraes, 6 anos. “A tia Conceição era uma bruxa, mas a gente não tinha o telefone da polícia para contar o que ela fazia.” Sem tirar os olhos do tablet apoiado em seu colo, o garoto de bochechas coradas relata suas memórias da escola infantil de classe média alta Trenzinho Feliz. Boa parte de suas referências foi construída naquele endereço da Vila Mariana, zona sul de São Paulo, onde estava desde os seis meses de idade em período integral. Em dezembro do ano passado, uma funcionária revelou os maus-tratos aos quais as crianças ali matriculadas eram submetidas com a ajuda de uma câmera escondida. Enquanto alimentava os alunos grosseiramente, a diretora-pedagoga Conceição Tomaz Cruz dava puxões no cabelo e na orelha, tapa na cara, chacoalhões. Há relatos de que os obrigava a engolir o próprio vômito, provocado pelo excesso de comida. Felipe e seus colegas não podiam contar a ninguém, sob uma suposta ameaça da diretora em “cortar a cabeça dos pais”. Os mesmos que pagavam mensalidade superior a R$ 1.500, confiaram na tradição de 30 anos da instituição e nas credenciais acadêmicas de Conceição. Logo depois que o escândalo veio à tona, a escola foi fechada e a diretora foi denunciada por maus-tratos. Mas o terror que essas crianças tão pequenas passaram ainda reverbera na rotina das famílias, muitas sob tratamento psicológico e medicação. Há até quem mudou de cidade para tentar superar o trauma. Enquanto isso, a diretora aguarda a decisão da Justiça em sua casa, em São Paulo, e leva uma vida normal.
TRAUMA
Quando não comia, Felipe apanhava na escola. Seus pais, Evandro e Flavia Moraes,
não sabiam, mas estranhavam seu comportamento agressivo
“Como eu poderia desconfiar?”, afirma o gerente-comercial Evandro Moraes, pai de Felipe. “Meu filho sabia ler e escrever aos 5 anos, supus que a escola fosse competente.” A culpa permanece latente nesses pais – eles não se perdoam por ter ignorado ou subestimado os sinais de suas crianças (leia o quadro na pág. 62). Muitas delas se expressam por meio de comportamentos incomuns, outras pelo universo lúdico da fantasia. Felipe, por exemplo, adquiriu uma aversão a queijo e se tornou agressivo a ponto de dar socos e chutes. Já Rafaela, aos 5 anos, começou a brincar com as bonecas de um jeito diferente: dizia se chamar Conceição e fazia com que elas engolissem comida à força. A mãe, Priscilla Lomovtov, achou que era apenas fruto da imaginação. “A ideia de que aquilo acontecesse de verdade era surreal demais para acreditar.” Em outra casa, quando Luciana Lopes perguntava ao filho de 4 anos por que ele chegava da aula com fezes, Guilherme saía correndo e chorava. Segundo depoimentos, os alunos que se recusavam a fazer as refeições eram colocados de castigo por horas em um cômodo escuro e sem acesso ao banheiro.
O Ministério Público ofereceu uma denúncia de maus-tratos contra Conceição. Se condenada, a previsão é de que fique cerca de um ano presa. A decisão contrariou a vontade dos pais. Eles pediam que a diretora fosse incriminada por tortura, sujeita a uma pena muito mais rigorosa. ISTOÉ solicitou uma entrevista com a acusada, mas ela se negou. Seu advogado, Antônio Sidnei Ramos de Brito, afirma que a cliente está desempregada, já foi agredida fisicamente e não se sente preparada para falar. O processo corre em sigilo e a primeira audiência está marcada para janeiro de 2014, mais de um ano depois da data das cenas anexadas como prova. Só então serão feitas as avaliações psicológicas de 19 crianças por profissionais do Tribunal de Justiça – com resultados prejudicados, devido ao tempo entre os episódios e os exames.
O advogado Brito diz que Conceição assume o tapa na cara da aluna Valentina, com 2 anos na época, que aparece nas gravações que repercutiram em todo o País. Teria sido uma exceção, atitude “estúpida” de descontrole emocional, em virtude dos medicamentos para emagrecer que a diretora tomava. “Não vou admitir a transferência de responsabilidade”, afirma. “Alguns pais não tinham competência para a maternidade, talvez esses traumas tenham sido causados por eles, não pelo que alegam ter acontecido no colégio.” Consultada, a Secretaria Municipal de Ensino explicou que a licença de funcionamento da Trenzinho Feliz foi cassada em janeiro, mas Conceição poderia pedir autorização para abrir outra escola, solicitação essa que passará por uma avaliação. Enquanto isso, alguns pais mantêm um grupo na internet em que trocam informações sobre a evolução dos filhos. Há também processos cíveis pedindo ressarcimento das mensalidades pagas à escola como forma de indenização.
Especialista em crianças e adolescentes, a psicóloga Ceres Araújo analisa que a diretora era uma das figuras adultas mais presentes no cotidiano desses meninos e meninas. Um modelo hostil e assustador que provocou uma complicada inversão de valores. “Ela não só transformou a escola em um ambiente inseguro como abalou a confiança que tinham em vínculos muito próximos”, diz. Isso explica por que as crianças começaram a verbalizar situações apenas agora, meses depois de o episódio vir à tona. Há um longo período de estresse após o trauma. Felipe teve transtornos de adaptação na nova escola e estranhou que não havia castigo por lá. Rafaela ainda tem muitos pesadelos e dificuldade de fazer amizade. Guilherme teme ficar sozinho e desenvolveu um problema na tireoide. “A alimentação é uma das primeiras referências afetivas, mas essas crianças a associaram com sofrimento e vergonha”, afirma a presidenta da Associação Brasileira de Psicopedagogia, Quézia Bombonatto.
Segundo especialistas, os alunos da Trenzinho Feliz correm o risco de apresentar distúrbios alimentares, além de problemas com aprendizagem e relacionamento. A sorte, dizem os especialistas, está na “elasticidade” do sistema nervoso dos pequenos, capazes de reelaborar as experiências negativas com acompanhamento psicológico e referências amorosas. O impacto nos pais, no entanto, pode ser mais complexo. Evandro e Flavia Moraes confessam que a história quase os levou à separação e recorreram à terapia de casal. “Estávamos em pé de guerra, botando a culpa pelo que aconteceu no outro”, diz Flavia. Priscilla Lomovtov não se sente tranquila para deixar a filha com ninguém. Luciana Lopes toma remédios contra depressão, recebeu afastamento médico do trabalho e se mudou com a família para Guarulhos. “Eu fiquei com muita raiva, queria caçar aquela mulher de qualquer jeito, nunca mais tive paz de espírito.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário