ZERO HORA 29/08/2014 | 06h04
Em jornadas triplas, professores se dividem entre escolas para melhorar o salário. Percentual de profissionais que dão aula em mais de um local é maior no Rio Grande do Sul do que a média brasileira
por Guilherme Justino
Da cama para a escola, da escola para um almoço rápido em casa, de casa para outra escola, de lá para uma reunião — isso quando não há mais uma classe para lecionar. A rotina de Fernanda Duarte, 52 anos, moradora de Porto Alegre, é análoga à de muitos professores. Dividindo-se entre várias jornadas, ensinando mais de uma centena de alunos em apenas um dia, eles buscam incrementar o salário, considerado baixo para a carga horária e a importância da profissão. Esse cotidiano resulta em cansaço, e acaba por comprometer a qualidade das lições e o aprendizado dos estudantes.
A rotina de quem faz essa longa jornada no ensino começa cedo e, não raro, se estende em aulas até a noite. A semana de Fernanda tem início no Colégio Anchieta, onde leciona geografia para as turmas da 8ª série do Ensino Fundamental. A manhã é passada ali, e o meio-dia que a leva para uma refeição em casa marca também a transição da rede privada para a pública — de uma jornada para outra. À tarde, já preparada para ministrar outra disciplina, a professora se divide em aulas de geografia e de história para o 7º ano na Escola Estadual de Educação Básica Dolores Alcaraz Caldas.
— Meu rendimento nas primeiras aulas é muito bom, mas nas últimas fica pior. É inevitável — reflete a professora.
Fernanda percorre de carro o trajeto entre as escolas, que ficam perto de sua casa, o que poupa tempo e desgaste com o trânsito.
Média nacional no topo de pesquisa
São aulas de manhã, à tarde, à noite: dias inteiros passados em sala de aula. O esforço, Fernanda revela, tem um só objetivo: complementar a renda no final do mês.
— Trabalhar só em uma escola seria o ideal e certamente amenizaria os problemas de quem precisa se deslocar entre três, quatro lugares diferentes — avalia Lúcia Schneider Hardt, doutora em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
No Brasil, cada docente da educação básica gasta, em média, 25 horas por semana só dando aulas, conforme dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) — um percentual 24% maior do que outros 30 países analisados na última Pesquisa Internacional sobre Ensino e Aprendizagem (Talis), divulgada em junho.
Com 54 horas por semana, Fernanda excede em mais de duas vezes a já elevada média nacional. Nas quintas e sextas, ela ainda leciona no Colégio Americano — e a tripla jornada acaba pesando no decorrer do dia.
Entre as três escolas, a professora passa, em média, mais de 10 horas por dia em turmas dos Ensinos Fundamental e Médio, além de ensinar alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Estado. Ao todo, são mais de 600 alunos.
— Não tem como lembrar o nome de todos — desabafa.
Fernanda está perto da aposentadoria, e assumiu a vaga no magistério estadual há dois anos.
— A nossa profissão é diferente. Sempre temos um envolvimento fora de sala de aula — reflete ela.
Como menos da metade dos professores no Brasil tem contrato em tempo integral, grande parte deles acaba pulverizando sua atuação em diversas instituições. No Rio Grande do Sul, um em cada quatro docentes trabalha em mais de uma escola. A escolha parte do próprio profissional, mas alguns fatores contribuem. Na primeira metade do Ensino Fundamental, um mesmo professor leciona a maioria das disciplinas para uma determinada turma. Nos anos seguintes, cada profissional fica responsável por uma disciplina. A carga horária e o número de turmas passa a ser limitado, fazendo com que muitos optem por ensinar em mais de uma instituição.
Jornada múltipla é mais comum no RS
Essa divisão acaba comprometendo o ensino. O presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Roberto Franklin de Leão, considera que todos saem perdendo. Para ele, ainda se está longe de conseguir condições de trabalho que permitam o melhor desempenho dos profissionais, tanto nas escolas públicas quanto nas particulares.
— São duas pessoas totalmente penalizadas: o professor, pelo cansaço, e o aluno, pela qualidade abaixo da que deveria ter — garante Leão.
Coordenadora de levantamentos sobre a carreira de magistério da Fundação Carlos Chagas, a pesquisadora Bernardete Gatti ressalta que a maioria dos profissionais da educação no Brasil se dedica a apenas um estabelecimento, como ocorre em países tidos como exemplares. Ainda assim, 21,8% dão aula em mais de um local — percentual ainda maior no Rio Grande do Sul, onde 25,2% trabalham em várias instituições.
— É um nó das nossas políticas educacionais. As aulas para várias turmas funcionariam para grupos menores, mas o modelo atual é bastante prejudicial, tanto para alunos quanto professores — aponta a pesquisadora.
Ela salienta ainda que lecionar em um só colégio contribui para a criação de um vínculo que facilitaria o acompanhamento dispensado a cada estudante — o que contribuiria para o melhor desempenho, além de permitir ao profissional se concentrar mais nas aulas — e no que é preciso fazer além delas.
Mais horas em sala de aula, menos preparação
Não é só o ato de lecionar que é afetado pela jornada excessiva. Fora da sala de aula, há provas para corrigir, lições a preparar, reuniões a fazer. O professor de educação física Carlos Eduardo Berwanger, 45 anos, se divide em três para cumprir o magistério em uma escola particular, uma municipal e ainda em uma faculdade. Toda semana, são 70 horas dedicadas à carreira, sem contar o tempo gasto com atividades extraclasse.
— Isso acaba afetando a qualidade das aulas. Tenho pouco tempo de atualização para poder estudar, fazer uma leitura mais aprofundada e inclusive para o lazer — afirma Berwanger.
Adicional noturno é alento financeiro
O professor começa a lecionar de manhã e segue até as 22h45min nos dias de semana — além de dar aulas em alguns sábados. Para ele, um passo importante na valorização da profissão surge com o pagamento de adicional noturno de 20% a professores da rede pública do Estado, aprovado na semana passada pela Justiça. Ainda assim, Berwanger ressalta que o incremento no salário não soluciona a falta de tempo para investir na própria qualificação.
A crítica vai ao encontro do que mostra a pesquisa Talis. O levantamento aponta que a maior parte dos professores brasileiros declara amor pela profissão, mas se sente desvalorizado. Gerente da área técnica do movimento Todos Pela Educação, Alejandra Meraz Velasco reforça que tal jornada estressante compromete principalmente o aluno.
— Se o professor trabalha em mais de uma escola, também tem capacidade menor de observar o desenvolvimento dos alunos separadamente e pensar estratégias específicas para cada um. Isso prejudica o profissional, e em consequência piora a qualidade do ensino — garante Alejandra.
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