VEJA ONLINE 22/03/2014 - 18:52
Ministério Público do Rio investiga mais de 60 suspeitos de burlar mecanismo de seleção. Estudantes reclamam de falta de ação da Universidade
Pâmela Oliveira e Daniel Haidar
Vanessa Daudt foi aprovada como cotista após se declarar negra ou índia no vestibular de 2013 (Reprodução/MPRJ)
A foto de uma jovem em uma praia, publicada no Facebook, motivou o comentário de uma amiga. “Ficou morena?”, perguntou. A menina da foto, para não deixar dúvida sobre como se enxerga, respondeu com um palavrão irreproduzível: “Sou loira, p...” Desde setembro, a jovem da foto, Vanessa Daudt, frequenta o curso de enfermagem na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a Uerj. Para a instituição, no entanto, ela apresentou uma ideia diferente sobre seu tom de pele e sua descendência. Vanessa declarou ser negra ou índia e afirmou ter baixa renda. Conseguiu, assim, ingressar na faculdade apesar de ter ocupado o 122º lugar na classificação geral, para um curso com 80 vagas.
Como cotista, Vanessa disputou 16 vagas com 34 candidatos – 2,19 interessados em cada cadeira. Na seleção normal, a corrida seria bem mais apertada: teria que brigar com 515 vestibulandos por 44 matrículas. O caso de Vanessa é um dos mais de 60 sobre as mesas dos promotores de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio. Desde 2007, denúncias anônimas e dos próprios estudantes avolumam-se em um inquérito de mais de 3.000 páginas dedicado a descobrir se o sistema de cotas na Uerj, que toma previamente 45% das vagas da instituição, é usado como atalho ilegal para estudantes que se aproveitam das fragilidades da lei estadual 5.346 – a que dispõe sobre o sistema de cotas nas universidades estaduais do Rio. Como é sabido por todos os candidatos, basta declarar-se negro ou índio e apresentar comprovantes de baixa renda para ser avaliado como cotista, com absurdas vantagens sobre os demais concorrentes. Apesar da abundância de denúncias e de a lei determinar que “cabe à universidade criar mecanismos de combate à fraude”, a direção da Uerj não está preocupada com os buracos em seu sistema.
O MP, diante do volume de denúncias, faz o que a instituição já deveria ter feito: evitar a farra que subverteu não só os critérios de meritocracia para ingresso na universidade, mas a própria lógica das cotas. Os “espertos” conseguem, com notas bem mais baixas, passar na frente de gente que estudou e recusou-se a recorrer ao caminho da fraude. O descaso da universidade consegue algo inédito, que é unir gente a favor e contra as cotas. Afinal, um sistema de cotas raciais que não barra os falsos cotistas prejudica a todos, e não somente aos que, por lei – por pior que ela seja – teriam acesso legítimo ao benefício.
Vanessa DaudtReprodução/MPRJ
Vanessa Daudt foi aprovada como cotista após se declarar negra ou índia no vestibular de 2013. Classificada na 122ª posição geral entre os vestibulandos de enfermagem, a loira de olhos azuis não teria conseguido uma das 80 vagas do curso se não tivesse concorrido às vagas destinadas a cotistas
O caminho da investigação será longo. Os promotores tentarão, no âmbito criminal, encontrar uma saída para um problema criado por uma política equivocada, que classifica pessoas segundo critérios raciais. Pesquisa do geneticista Sérgio Danilo Pena, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), identificou que 60% dos brasileiros que se julgam "brancos" têm sangue africano ou indígena nas veias. O caso do sambista Luiz Antônio Feliciano Marcondes, o Neguinho da Beija-Flor, é simbólico. Exame feito pelo laboratório de Pena identificou que ele tem 67,1% dos genes de origem na Europa e apenas 31,5% da África.
Na sexta-feira, no intervalo de uma das aulas do curso de enfermagem da Uerj, Vanessa, a estudante loira que abre este texto, defendeu seu direito ao benefício. Vanessa disse que sua documentação foi aceita, e que é “carente”. Como não existe cota para quem é branco e carente, declarou-se “negra ou índia”. “Digo que sou da cor que eu quiser”, afirmou. Ela acertou em cheio a origem do problema do sistema das políticas raciais.
Vale, para os efeitos legais, a autodeclaração da cor da pele. De acordo com a legislação brasileira, não é função do Estado determinar a raça de uma pessoa. Ou seja: é negro ou índio quem decidir assim se classificar perante a instituição. Quando a universidade tenta interferir, a confusão é imensa, como provou o caso dos gêmeos univitelinos Alex e Alan Teixeira da Cunha – o primeiro classificado como branco e, o segundo, como negro pela Universidade de Brasília (UnB). O disparate no enquadramento de pessoas geneticamente idênticas levou a UnB a modificar o ingresso dos cotistas. Em vez da simples declaração do estudante, há uma entrevista pessoal com o candidato – algo que, obviamente, não corrige uma política torta, mas afugenta quem tenta se aproveitar de brechas legais.
Para o sociólogo Demétrio Magnoli, do Grupo de Análises de Conjuntura Internacional (Gacint) da USP, são claros os sinais de que os critérios raciais são um erro, e não atendem o objetivo de promover igualdade. "Polícias raciais dividem o país em grupos e produzem atritos, o que é perigosíssimo em qualquer sociedade. É preciso abolir o princípio da autodeclaração, para o bem do funcionamento do sistema”, alerta.
O sociólogo Simon Schwartzman, um dos autores do livro Divisões Perigosas: Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo (Editora Record/Civilização Brasileira), avalia que os critérios de cotas dificilmente serão ajustados simplesmente por um aperto no controle. O mais adequado, afirma, seria que as instituições de ensino originassem soluções para privilegiar alunos carentes, em vez de tentar uma segregação. "O sistema inteiro de cotas tem problemas. Todos os critérios são muito grosseiros. A solução não é apertar o controle, mas uma política mais inteligente de preferências, que amplie o sistema de apoio para quem realmente precisa", afirma Schwartzman.
A lei estadual fluminense que instituiu o sistema de cotas exige que pelo menos duas condições estejam atendidas. Baixa renda é o critério indispensável. A segunda condição pode ser raça (declarar-se indígena ou negro), ser filho de policiais mortos em serviço ou inválidos ou, ainda, tratar-se de pessoa com deficiência física. O problema é que o critério de renda é facilmente burlável. O candidato cotista deve comprovar renda familiar per capita bruta de até 960 reais.
Curso mais disputado da Uerj, com 135 candidatos por vaga (para não cotistas) em 2013, a graduação em medicina concentra o maior número de denúncias sobre irregularidades. A primeira denúncia do inquérito civil instaurado pelo Ministério Público é referente à fraude no concurso de 2004 para a graduação – um curso no qual cada estudante custa aos cofres públicos 54.300 reais por ano. Na lista com nove suspeitos de fraudes havia moradores de áreas nobres do Rio, como o bairro da Lagoa.
Em janeiro do ano passado, o MP recebeu outra denúncia anônima com 41 nomes de aprovados em 2013 que teriam fraudade os critérios estipulados pela lei 5.346. A denúncia foi entregue em um CD com notas e imagens dos universitários que não aparentam pertencer à raça declarada na inscrição do vestibular. Quatro dos universitários citados são estudantes de medicina: de pele clara, com cabelo liso, João Pedro Galiza Xavier é um dos apontados no material. Classificado na 542ª posição entre os vestibulandos de medicina, não teria garantido uma das 94 vagas da graduação se não tivesse disputado como cotista negro ou índio. Na internet, Galiza, que estudou no GPI (curso pré-vestibular particular no Rio de Janeiro) agradece aos professores do curso pela aprovação. “Sou eternamente grato a alguns professores. Todos são responsáveis pela minha conquista. Continuem sendo professores maravilhosos, que tornam sonhos que parecem impossíveis em realidade”. O curso GPI, frequentado por Galiza, tem mensalidade integral de 1.082,40 reais.
Na hora de comprovar a renda familiar, pode-se simplesmente omitir o rendimento de um ou mais integrantes da família. A lei 5.346 prevê um mecanismo para garantir que haja, pelo menos, algum controle sobre o que declara o candidato. O parágrafo 3º do artigo 1º estabelece que as universidades devem “criar mecanismos de combate à fraude”. De fato, existe na instituição uma Comissão de Análise Socioeconômica, formada por três servidoras públicas e 28 assistentes sociais. Após a análise da documentação, a comissão realiza, segundo a universidade, “visitas domiciliares a alguns candidatos para dirimir dúvidas”. Em 2010, foram 14 dessas visitas, segundo documento da Uerj enviado ao MP. Em 2011, foram três. Segundo declaração de Lena Medeiro de Menezes, sub-reitora de graduação, não são feitas visitas fora do Estado do Rio. Ou seja, morar fora do território fluminense é garantia de que não haverá confirmação dos dados apresentados.
Investigação – Os casos investigados agora pelo MP envolvem 15 cursos de graduação. Estudante de direito, Thatyane Alecrim Azeredo tem cabelo liso e olhos claros – no Facebook, amigos discutem se são azuis ou verdes. Classificada na 871º colocação geral do curso de direito, Thatyane estaria longe das 312 vagas disponíveis para o curso em 2013. Mas, como declarou-se negra ou indígena, em vez de disputar uma vaga com outros 28,95 vestibulandos não cotistas, concorreu com 3,67 candidatos por vaga. Na página de relacionamentos, Thatyane publicou, no dia 19 de setembro, uma foto com a turma no hall da Uerj. “Felicidade após trote”, escreveu. Outra aluna aprovada no vestibular de 2013 como cotista é Dianne Leite da Silva. Branca, com cabelos e olhos claros, ela foi classificada na 266ª posição geral para o curso de jornalismo – longe das 50 vagas oferecidas pelo curso.
Pela disputa afunilada, conquistar uma vaga em uma universidade pública é motivo de orgulho – para os estudantes e para os pais. Ao comemorar a aprovação na Uerj, muitos dos investigados publicaram no Facebook o espelho da classificação, mas com um cuidado: cortaram o trecho que explicita a inscrição como cotista. “Mais um sonho realizado e sem vocês isso não seria possível”, escreveu Vitor Pablo de Souza Gilard, aprovado no vestibular para jornalismo no ano passado. O jovem branco de cabelos escuros omitiu aos amigos da rede social que para ingressar na Uerj se declarou negro ou índio. Procurado pelo site de VEJA, Gilard se recusou a explicar a razão de ter se inscrito como cotista.
Indignação dos estudantes – Como mostra a ciência, não é possível classificar a descendência com base na cor da pele. Mas são estes – e os sinais inequívocos de condição social – os critérios que embasam denúncias dos próprios estudantes. A presença de cotistas brancos, com olhos claros, com celulares caros e aparelhos como iPads, tem revoltado universitários que precisaram estudar anos para conseguir uma vaga na Uerj. Alguns chegam a acusar a Uerj de acobertar as fraudes. O baixo número de sindicâncias instauradas é outro motivo de reclamações: foram apenas 17, até agora. “A Uerj está preenchendo vagas com pessoas que se dizem negras ou pobres sem comprovação válida. Apenas com uma declaração”, disse um dos denunciantes, em 2011.
Apesar do elevado número de denúncias, até o momento apenas um estudante foi expulso por ter burlado a reserva de vagas: Bruno Barros Marques, de 29 anos, teve a matrícula cancelada no ano passado. De acordo com investigações da Uerj e do MP, para concorrer a uma vaga de cotista em 2009, Marques se passou por estudante carente e declarou renda de 450 reais, omitindo os comprovantes de rendimento do pai, aposentado da Petrobras e proprietário de uma loja de material hidráulico e elétrico na Tijuca, na Zona Norte do Rio. Além disso, declarou ser negro. Outra investigada pela universidade é Lívia Leba, filha do delegado da Polícia Civil Carlos Augusto Neto Leba, aprovada como cotista na faculdade de medicina. O caso de Lívia corre em segredo de Justiça.
Desde a última segunda-feira, a reportagem do site de VEJA tenta ouvir o reitor da Uerj, Ricardo Vieiralves de Castro, ou um porta-voz da universidade sobre o inquérito civil 118/11, que apura se a Uerj tem um sistema eficiente para prevenir e investigar fraudes no sistema de cotas, como determina a lei, e se há improbidade de servidores públicos responsáveis pela avaliação de documentos e sindicâncias. A Uerj não apresentou nenhum porta-voz. A universidade argumenta, em um documento incluído no inquérito cicil 118/11, que a lei 5.346 estabelece que, para concorrer à vaga de cotista, o candidato pode se autodeclarar negro ou índio e que, portanto, não cabe à instituição investigar ou duvidar de tal declaração. “A Uerj não promove qualquer ‘tribunal de cor’, portanto, seu principal critério é a autodeclaração”, escreveu Vieiralves, em agosto de 2008, em resposta a um pedido do Ministério Público, ignorando que a lei 5.346 determina que as universidades criem mecanismos de combate às fraudes.
Em maio de 2013, depois de diversas cobranças do MP relacionadas à falta de fiscalização em relação às declarações dos alunos, Valdino de Azevedo, assessor do reitor, argumentou que a “autodeclaração cria enorme dificuldade para esta entidade de ensino superior”. Azevedo chega a dizer que “o sentido de pertencimento foge aos critérios objetivos de julgamento”.
No Supremo Tribunal Federal (STF), em ação apoiada pelo partido Democratas (DEM), foi questionada a legalidade da política de cotas raciais no processo seletivo da Universidade Nacional de Brasília (UnB). A legalidade foi reconhecida por unanimidade pelos 12 ministros do STF. Autora da ação, a jurista Roberta Fragoso avalia que eventuais acusações de fraude na declaração de raça dificilmente serão reconhecidas na Justiça como crime. Justamente porque não existem no país — felizmente — leis para dividir a identidade da população pela cor da pele. Procuradora do Distrito Federal e autora do livro Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito? (Editora Livraria do Advogado), Roberta avalia que essa divisão legal seria um retrocesso. "Se o Ministério Público acusar alguém de não ser negro, teria de fazer um exame de DNA de ancestralidade. Não há no Brasil como definir quem é o pardo ou o mestiço. É possível que pessoas de aparência branca tenham descendência africana. Cota racial é uma falácia. Sempre dará ensejo a fraudes", diz a jurista.
Ministério Público do Rio investiga mais de 60 suspeitos de burlar mecanismo de seleção. Estudantes reclamam de falta de ação da Universidade
Pâmela Oliveira e Daniel Haidar
Vanessa Daudt foi aprovada como cotista após se declarar negra ou índia no vestibular de 2013 (Reprodução/MPRJ)
A foto de uma jovem em uma praia, publicada no Facebook, motivou o comentário de uma amiga. “Ficou morena?”, perguntou. A menina da foto, para não deixar dúvida sobre como se enxerga, respondeu com um palavrão irreproduzível: “Sou loira, p...” Desde setembro, a jovem da foto, Vanessa Daudt, frequenta o curso de enfermagem na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a Uerj. Para a instituição, no entanto, ela apresentou uma ideia diferente sobre seu tom de pele e sua descendência. Vanessa declarou ser negra ou índia e afirmou ter baixa renda. Conseguiu, assim, ingressar na faculdade apesar de ter ocupado o 122º lugar na classificação geral, para um curso com 80 vagas.
Como cotista, Vanessa disputou 16 vagas com 34 candidatos – 2,19 interessados em cada cadeira. Na seleção normal, a corrida seria bem mais apertada: teria que brigar com 515 vestibulandos por 44 matrículas. O caso de Vanessa é um dos mais de 60 sobre as mesas dos promotores de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio. Desde 2007, denúncias anônimas e dos próprios estudantes avolumam-se em um inquérito de mais de 3.000 páginas dedicado a descobrir se o sistema de cotas na Uerj, que toma previamente 45% das vagas da instituição, é usado como atalho ilegal para estudantes que se aproveitam das fragilidades da lei estadual 5.346 – a que dispõe sobre o sistema de cotas nas universidades estaduais do Rio. Como é sabido por todos os candidatos, basta declarar-se negro ou índio e apresentar comprovantes de baixa renda para ser avaliado como cotista, com absurdas vantagens sobre os demais concorrentes. Apesar da abundância de denúncias e de a lei determinar que “cabe à universidade criar mecanismos de combate à fraude”, a direção da Uerj não está preocupada com os buracos em seu sistema.
O MP, diante do volume de denúncias, faz o que a instituição já deveria ter feito: evitar a farra que subverteu não só os critérios de meritocracia para ingresso na universidade, mas a própria lógica das cotas. Os “espertos” conseguem, com notas bem mais baixas, passar na frente de gente que estudou e recusou-se a recorrer ao caminho da fraude. O descaso da universidade consegue algo inédito, que é unir gente a favor e contra as cotas. Afinal, um sistema de cotas raciais que não barra os falsos cotistas prejudica a todos, e não somente aos que, por lei – por pior que ela seja – teriam acesso legítimo ao benefício.
Vanessa DaudtReprodução/MPRJ
Vanessa Daudt foi aprovada como cotista após se declarar negra ou índia no vestibular de 2013. Classificada na 122ª posição geral entre os vestibulandos de enfermagem, a loira de olhos azuis não teria conseguido uma das 80 vagas do curso se não tivesse concorrido às vagas destinadas a cotistas
O caminho da investigação será longo. Os promotores tentarão, no âmbito criminal, encontrar uma saída para um problema criado por uma política equivocada, que classifica pessoas segundo critérios raciais. Pesquisa do geneticista Sérgio Danilo Pena, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), identificou que 60% dos brasileiros que se julgam "brancos" têm sangue africano ou indígena nas veias. O caso do sambista Luiz Antônio Feliciano Marcondes, o Neguinho da Beija-Flor, é simbólico. Exame feito pelo laboratório de Pena identificou que ele tem 67,1% dos genes de origem na Europa e apenas 31,5% da África.
Na sexta-feira, no intervalo de uma das aulas do curso de enfermagem da Uerj, Vanessa, a estudante loira que abre este texto, defendeu seu direito ao benefício. Vanessa disse que sua documentação foi aceita, e que é “carente”. Como não existe cota para quem é branco e carente, declarou-se “negra ou índia”. “Digo que sou da cor que eu quiser”, afirmou. Ela acertou em cheio a origem do problema do sistema das políticas raciais.
Vale, para os efeitos legais, a autodeclaração da cor da pele. De acordo com a legislação brasileira, não é função do Estado determinar a raça de uma pessoa. Ou seja: é negro ou índio quem decidir assim se classificar perante a instituição. Quando a universidade tenta interferir, a confusão é imensa, como provou o caso dos gêmeos univitelinos Alex e Alan Teixeira da Cunha – o primeiro classificado como branco e, o segundo, como negro pela Universidade de Brasília (UnB). O disparate no enquadramento de pessoas geneticamente idênticas levou a UnB a modificar o ingresso dos cotistas. Em vez da simples declaração do estudante, há uma entrevista pessoal com o candidato – algo que, obviamente, não corrige uma política torta, mas afugenta quem tenta se aproveitar de brechas legais.
Para o sociólogo Demétrio Magnoli, do Grupo de Análises de Conjuntura Internacional (Gacint) da USP, são claros os sinais de que os critérios raciais são um erro, e não atendem o objetivo de promover igualdade. "Polícias raciais dividem o país em grupos e produzem atritos, o que é perigosíssimo em qualquer sociedade. É preciso abolir o princípio da autodeclaração, para o bem do funcionamento do sistema”, alerta.
O sociólogo Simon Schwartzman, um dos autores do livro Divisões Perigosas: Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo (Editora Record/Civilização Brasileira), avalia que os critérios de cotas dificilmente serão ajustados simplesmente por um aperto no controle. O mais adequado, afirma, seria que as instituições de ensino originassem soluções para privilegiar alunos carentes, em vez de tentar uma segregação. "O sistema inteiro de cotas tem problemas. Todos os critérios são muito grosseiros. A solução não é apertar o controle, mas uma política mais inteligente de preferências, que amplie o sistema de apoio para quem realmente precisa", afirma Schwartzman.
A lei estadual fluminense que instituiu o sistema de cotas exige que pelo menos duas condições estejam atendidas. Baixa renda é o critério indispensável. A segunda condição pode ser raça (declarar-se indígena ou negro), ser filho de policiais mortos em serviço ou inválidos ou, ainda, tratar-se de pessoa com deficiência física. O problema é que o critério de renda é facilmente burlável. O candidato cotista deve comprovar renda familiar per capita bruta de até 960 reais.
Curso mais disputado da Uerj, com 135 candidatos por vaga (para não cotistas) em 2013, a graduação em medicina concentra o maior número de denúncias sobre irregularidades. A primeira denúncia do inquérito civil instaurado pelo Ministério Público é referente à fraude no concurso de 2004 para a graduação – um curso no qual cada estudante custa aos cofres públicos 54.300 reais por ano. Na lista com nove suspeitos de fraudes havia moradores de áreas nobres do Rio, como o bairro da Lagoa.
Em janeiro do ano passado, o MP recebeu outra denúncia anônima com 41 nomes de aprovados em 2013 que teriam fraudade os critérios estipulados pela lei 5.346. A denúncia foi entregue em um CD com notas e imagens dos universitários que não aparentam pertencer à raça declarada na inscrição do vestibular. Quatro dos universitários citados são estudantes de medicina: de pele clara, com cabelo liso, João Pedro Galiza Xavier é um dos apontados no material. Classificado na 542ª posição entre os vestibulandos de medicina, não teria garantido uma das 94 vagas da graduação se não tivesse disputado como cotista negro ou índio. Na internet, Galiza, que estudou no GPI (curso pré-vestibular particular no Rio de Janeiro) agradece aos professores do curso pela aprovação. “Sou eternamente grato a alguns professores. Todos são responsáveis pela minha conquista. Continuem sendo professores maravilhosos, que tornam sonhos que parecem impossíveis em realidade”. O curso GPI, frequentado por Galiza, tem mensalidade integral de 1.082,40 reais.
Na hora de comprovar a renda familiar, pode-se simplesmente omitir o rendimento de um ou mais integrantes da família. A lei 5.346 prevê um mecanismo para garantir que haja, pelo menos, algum controle sobre o que declara o candidato. O parágrafo 3º do artigo 1º estabelece que as universidades devem “criar mecanismos de combate à fraude”. De fato, existe na instituição uma Comissão de Análise Socioeconômica, formada por três servidoras públicas e 28 assistentes sociais. Após a análise da documentação, a comissão realiza, segundo a universidade, “visitas domiciliares a alguns candidatos para dirimir dúvidas”. Em 2010, foram 14 dessas visitas, segundo documento da Uerj enviado ao MP. Em 2011, foram três. Segundo declaração de Lena Medeiro de Menezes, sub-reitora de graduação, não são feitas visitas fora do Estado do Rio. Ou seja, morar fora do território fluminense é garantia de que não haverá confirmação dos dados apresentados.
Investigação – Os casos investigados agora pelo MP envolvem 15 cursos de graduação. Estudante de direito, Thatyane Alecrim Azeredo tem cabelo liso e olhos claros – no Facebook, amigos discutem se são azuis ou verdes. Classificada na 871º colocação geral do curso de direito, Thatyane estaria longe das 312 vagas disponíveis para o curso em 2013. Mas, como declarou-se negra ou indígena, em vez de disputar uma vaga com outros 28,95 vestibulandos não cotistas, concorreu com 3,67 candidatos por vaga. Na página de relacionamentos, Thatyane publicou, no dia 19 de setembro, uma foto com a turma no hall da Uerj. “Felicidade após trote”, escreveu. Outra aluna aprovada no vestibular de 2013 como cotista é Dianne Leite da Silva. Branca, com cabelos e olhos claros, ela foi classificada na 266ª posição geral para o curso de jornalismo – longe das 50 vagas oferecidas pelo curso.
Pela disputa afunilada, conquistar uma vaga em uma universidade pública é motivo de orgulho – para os estudantes e para os pais. Ao comemorar a aprovação na Uerj, muitos dos investigados publicaram no Facebook o espelho da classificação, mas com um cuidado: cortaram o trecho que explicita a inscrição como cotista. “Mais um sonho realizado e sem vocês isso não seria possível”, escreveu Vitor Pablo de Souza Gilard, aprovado no vestibular para jornalismo no ano passado. O jovem branco de cabelos escuros omitiu aos amigos da rede social que para ingressar na Uerj se declarou negro ou índio. Procurado pelo site de VEJA, Gilard se recusou a explicar a razão de ter se inscrito como cotista.
Indignação dos estudantes – Como mostra a ciência, não é possível classificar a descendência com base na cor da pele. Mas são estes – e os sinais inequívocos de condição social – os critérios que embasam denúncias dos próprios estudantes. A presença de cotistas brancos, com olhos claros, com celulares caros e aparelhos como iPads, tem revoltado universitários que precisaram estudar anos para conseguir uma vaga na Uerj. Alguns chegam a acusar a Uerj de acobertar as fraudes. O baixo número de sindicâncias instauradas é outro motivo de reclamações: foram apenas 17, até agora. “A Uerj está preenchendo vagas com pessoas que se dizem negras ou pobres sem comprovação válida. Apenas com uma declaração”, disse um dos denunciantes, em 2011.
Apesar do elevado número de denúncias, até o momento apenas um estudante foi expulso por ter burlado a reserva de vagas: Bruno Barros Marques, de 29 anos, teve a matrícula cancelada no ano passado. De acordo com investigações da Uerj e do MP, para concorrer a uma vaga de cotista em 2009, Marques se passou por estudante carente e declarou renda de 450 reais, omitindo os comprovantes de rendimento do pai, aposentado da Petrobras e proprietário de uma loja de material hidráulico e elétrico na Tijuca, na Zona Norte do Rio. Além disso, declarou ser negro. Outra investigada pela universidade é Lívia Leba, filha do delegado da Polícia Civil Carlos Augusto Neto Leba, aprovada como cotista na faculdade de medicina. O caso de Lívia corre em segredo de Justiça.
Desde a última segunda-feira, a reportagem do site de VEJA tenta ouvir o reitor da Uerj, Ricardo Vieiralves de Castro, ou um porta-voz da universidade sobre o inquérito civil 118/11, que apura se a Uerj tem um sistema eficiente para prevenir e investigar fraudes no sistema de cotas, como determina a lei, e se há improbidade de servidores públicos responsáveis pela avaliação de documentos e sindicâncias. A Uerj não apresentou nenhum porta-voz. A universidade argumenta, em um documento incluído no inquérito cicil 118/11, que a lei 5.346 estabelece que, para concorrer à vaga de cotista, o candidato pode se autodeclarar negro ou índio e que, portanto, não cabe à instituição investigar ou duvidar de tal declaração. “A Uerj não promove qualquer ‘tribunal de cor’, portanto, seu principal critério é a autodeclaração”, escreveu Vieiralves, em agosto de 2008, em resposta a um pedido do Ministério Público, ignorando que a lei 5.346 determina que as universidades criem mecanismos de combate às fraudes.
Em maio de 2013, depois de diversas cobranças do MP relacionadas à falta de fiscalização em relação às declarações dos alunos, Valdino de Azevedo, assessor do reitor, argumentou que a “autodeclaração cria enorme dificuldade para esta entidade de ensino superior”. Azevedo chega a dizer que “o sentido de pertencimento foge aos critérios objetivos de julgamento”.
No Supremo Tribunal Federal (STF), em ação apoiada pelo partido Democratas (DEM), foi questionada a legalidade da política de cotas raciais no processo seletivo da Universidade Nacional de Brasília (UnB). A legalidade foi reconhecida por unanimidade pelos 12 ministros do STF. Autora da ação, a jurista Roberta Fragoso avalia que eventuais acusações de fraude na declaração de raça dificilmente serão reconhecidas na Justiça como crime. Justamente porque não existem no país — felizmente — leis para dividir a identidade da população pela cor da pele. Procuradora do Distrito Federal e autora do livro Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito? (Editora Livraria do Advogado), Roberta avalia que essa divisão legal seria um retrocesso. "Se o Ministério Público acusar alguém de não ser negro, teria de fazer um exame de DNA de ancestralidade. Não há no Brasil como definir quem é o pardo ou o mestiço. É possível que pessoas de aparência branca tenham descendência africana. Cota racial é uma falácia. Sempre dará ensejo a fraudes", diz a jurista.
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