ZERO HORA 25 de outubro de 2015 | N° 18335
ENTREVISTA: FERNANDO SAVATER
POR CARLOS ANDRÉ MOREIRA E ITAMAR MELO
“É importante escutar os problemas dos professores”
Espanhol, de origem basca, Fernando Savater é filósofo por formação, mas não se considera propriamente um pensador, e sim um professor de filosofia. É no ensino, não apenas como profissão, mas como militância, que Savater vem desenvolvendo a maior parte de sua atividade intelectual desde 1970: é autor de oito dezenas de livros, alguns traduzidos para mais de 20 idiomas, muitos deles dedicados a provocar leitores jovens sobre questões cruciais da ética e da filosofia. Savater já teve vários de seus livros lançados no Brasil, entre eles O Valor de Educar, Política para Meu Filho e A Importância da Escolha (pela Editora Planeta) e Ética Urgente (pela Editora do Sesc). Seus lançamentos mais recentes no país estão saindo na próxima semana pela L&PM, A Aventura do Pensamento e Lugares Mágicos: os Escritores e Suas Cidades (leia mais na página ao lado).
Savater é o convidado desta segunda, dia 26, no ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento. Por e-mail, ele concedeu a seguinte entrevista ao PrOA, na qual discorreu sobre focos de crise na gestão da educação, a falta de atenção aos problemas dos professores, a diferença entre problemas éticos individuais e problemas políticos sociais, a promoção da leitura e os desafios da educação no ambiente virtual, um espaço ao mesmo tempo desafiador, perigoso e libertário.
Como filósofo, um de seus temas recorrentes é a ética. O Brasil atravessa hoje o que muitos observadores interpretam como uma grave crise ética, marcada por escândalos de corrupção nos mais altos cargos da república e em praticamente todo o espectro partidário. O que um quadro como esse revela sobre o estado da ética na sociedade como um todo? O que se pode fazer para superar uma crise desse tipo?
Fui professor de ética por mais de 30 anos e dei aulas sobre o assunto em muitos países. Bem, durante todo esse tempo e em todos os lugares que visitei, as pessoas sempre me disseram que seu país estava em uma crise moral terrível. Aparentemente, a ética foi sempre um problema dos outros (políticos, banqueiros, militares etc.) e vivia-se em uma perpétua situação de crise. Lembrei-me do início de um conto de Borges, em que, falando sobre um antepassado seu, ele diz: “Couberam-lhe, como a todos os homens, maus tempos para viver”. A corrupção dos políticos e dos governantes é um problema ético somente para cada um deles, pessoalmente (se um ministro gasta o dinheiro destinado a um hospital infantil em uma viagem de lazer para o Caribe com uma amiga, certamente tem um problema moral), mas, nessa mesma hipótese, os cidadãos têm um problema político, não moral. A corrupção, presente no Brasil, na Espanha e em muitos outros lugares, que afeta aos políticos e a esses outros políticos que são os cidadãos, levanta a questão de como podemos tornar a impunidade dos crimes impossível e impedir as más práticas públicas, mas não de como fazer com que todos os homens empreguem bem sua liberdade.
O senhor tem escrito livros de filosofia para os jovens. Entende que a filosofia tem sido negligenciada para as novas gerações? O que espera alcançar com essas obras?
Eu não me considero um filósofo, com maiúscula, como Spinoza ou Kant, e sim um simples professor de filosofia. Acho que se os jovens aprenderem a prática da filosofia (e não apenas de dados, datas e nomes dos movimentos intelectuais, é claro), poderão dar mais profundidade humana para suas vidas e talvez pensar melhor sobre as questões que os cercam. Meus livros são destinados a ajudar os recém-chegados a conhecer essa tradição emancipadora, com base em dúvidas estimulantes e não em certezas rotineiras.
No Brasil, a escola funciona como um mecanismo de reprodução da desigualdade social. Crianças pobres vão para escolas públicas de qualidade deficiente, enquanto crianças de posses estudam em colégios privados em que a qualidade, muitas vezes, corresponde àquilo que a família pode pagar. Que mensagem um sistema assim passa à sociedade?
Envia a mensagem de um país mal governado, onde as pessoas não se importam o suficiente com a educação ao votar ou ao exigir dos eleitos que cumpram suas obrigações neste campo (e esse não é um problema exclusivo do Brasil, é claro, na Espanha acontece o mesmo). Os governos não se preocupam muito com a educação, porque os seus efeitos só são sentidos no longo prazo, e os políticos só planejam o futuro a algumas semanas de distância; de modo que são os cidadãos que devem insistir na importância desta questão. Uma boa educação pública é um elemento mais revolucionário de equiparação social do que qualquer sublevação violenta.
O Brasil também tem enfrentado outro problema: a carreira de professor não parece atraente para muitos jovens, e a procura por faculdades na área vem diminuindo. O ex-ministro da Educação do Brasil, Renato Janine Ribeiro, recentemente se referiu ao risco de um “apagão” de professores no sistema de educação. Que riscos uma situação dessas pode trazer para um país em desenvolvimento?
Riscos gravíssimos. Os professores são o fundamento da democracia, e eu diria que também da civilização. Sem eles, há apenas a barbárie da elite tecnológica e a arrogância brutal dos plutocratas latifundiários ou financeiros. É uma obrigação racional de todos tornar a carreira de professor atraente, dotá-la de uma boa preparação e de uma remuneração adequada. Acima de tudo, é importante que a cidadania escute os problemas e as advertências dos professores, converta-os em protagonistas sociais, limpe as suas fileiras de sindicalistas corruptos. Só então poderá exigir deles as responsabilidades de sua alta função, que não consiste em orientar meninos e adolescentes para que sejam revolucionários ou conservadores, e sim para que conheçam os requisitos da cidadania democrática e a exerçam como acharem melhor.
A promoção da leitura na escola tem sido muito discutida em termos duais: para alguns, as aulas de literatura devem apresentar ao aluno os clássicos que formam um cânone; para outros, deve ser encorajada a leitura com livros contemporâneos que os adolescentes e as crianças podem desfrutar com prazer. Qual sua opinião neste debate?
Em minha opinião, o importante é contagiar os jovens com o amor pela leitura, e não com a veneração aos clássicos. Esta última virá depois, se vier, e se não vier, o mundo não vai afundar por isso. Assim, os jovens devem ler o que eles gostam, não o que a maioria de seus professores de literatura aprecia. Que leiam Harry Potter e mais tarde, como tema acadêmico, conheçam Machado de Assis.
O senhor se posicionou contra o nacionalismo do País Basco, sua região de origem, tendo inclusive de receber proteção por causa de ameaças. Nesse contexto, que consequências para a Espanha e a Europa antevê na atual situação catalã, em que partidos separatistas saíram vitoriosos na última eleição?
A situação atual é muito grave, porque os separatismos nacionalistas ameaçam a unidade da cidadania. Um cidadão não é alguém que faz parte de um território ou de uma etnia, mas sim de um pacto constitucional a partir do qual cada um pode orientar sua identidade e sua opção de vida como melhor escolher. Nada é mais reacionário e antidemocrático que despedaçar um Estado de Direito e transformá-lo em um arquipélago de tribos étnicas.
Do ponto de vista ético, como o senhor analisa as posições de diferentes populações e governos diante da atual crise de refugiados na Europa?
Não se trata de um problema meramente ético, ou seja, de pessoas, e sim político, quer dizer, das autoridades europeias. Os refugiados políticos e os imigrantes econômicos devem ser acolhidos não apenas por humanidade, mas também porque podem ser imprescindíveis para o desenvolvimento de países com taxas de natalidade mais baixa. Mas é preciso dar-lhes condições dignas de vida e trabalho, assim como tentar ajudá-los em seus países de origem para que não precisem fazer os deslocamentos forçados que impõem tantos sacrifícios vitais. Não é apenas uma questão de boa vontade, e sim de uma reflexão inteligente sobre a melhor forma de organizar este fluxo agora tão caótico.
Muitas subculturas da atual sociedade de informação servem-se frequentemente do anonimato e do efeito manada em redes sociais para orquestrar perseguições em grupo e bullying, não importando a idade. Que desafios este contexto oferece ao ensino da ética?
O sentimento de impunidade oriundo do anonimato é uma das piores ameaças enfrentadas pela rede. Onde não há responsabilidade pessoal, a moral desaparece. Portanto, devemos garantir que não haja, nas redes sociais, nem impunidade, nem assédio, nem abusos contra pessoas ou roubos de propriedade intelectual. Lá onde os humanos exercemos nossa liberdade, deve haver leis, caso contrário, o que se favorece não é a liberdade, e sim a tirania dos piores.