Colégio público tem rotina de tráfico e consumo de drogas
entre alunos. Reportagem flagrou, em sete dias, alunos do Colégio
Estadual Júlio de Castilhos comprando e fumando maconha em horário de
aula no pátio
Por: Jeniffer Gularte
ZERO HORA 21/08/2017 Jovem vende maconha para outro estudante no pátio de tradicional escola da Capital Foto: Mário Jr./RBS TV / Agencia RBS
Um
homem com capuz se aproxima de um adolescente e entrega a ele uma
porção de maconha. O garoto, de boné e mochila nas costas, permanece com
a mão estendida, enquanto recebe outras três frações da droga logo
depois. Os dois estão cercados por um grupo de 10 adolescentes, que
conversa sob a sombra das árvores. O pagamento é feito com duas notas de
dinheiro, imediatamente conferidas pelo traficante. Já esmigalhando a
erva, o estudante se afasta para unir-se a um segundo grupo, que o
espera. Juntos, preparam o cigarro, que é aceso ali mesmo.
O
flagrante de venda e consumo de drogas, comum em parques, praças e ruas
de Porto Alegre, ocorreu na manhã de 17 de julho, uma segunda-feira, em
horário de aula, no pátio do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, mais
tradicional escola pública do Rio Grande do Sul. O uso de droga se dava
ao lado do refeitório da instituição que formou líderes e intelectuais
como Leonel Brizola, Paixão Côrtes e Moacyr Scliar.
Por não
serem perturbados, no interior da escola do bairro Santana, a 400 metros
do Palácio da Polícia, alunos parecem estar à vontade para a compra e o
consumo de entorpecentes no momento em que deveriam estar na sala de
aula.
Os registros da reportagem aconteceram em sete
ocasiões, nos dias 13, 14, 17, 18 e 19 de julho e 17 e 18 de agosto,
entre 7h30min e 11h30min. Estudantes fumavam maconha e traficantes
comercializavam entorpecentes nos fundos da instituição que até o final
dos anos 1980 era chamada de ¿escola-padrão¿.
O consumo de
drogas entre os estudantes se inicia nas primeiras horas da manhã e não
se restringe a um momento do dia. Antes das 8h, adolescentes começam a
se reunir no pátio dos fundos da escola. Ficam todo o período de aula
conversando, trocando mensagens por celular e consumindo drogas. A
rotina não condiz com o que prega uma das regras que consta no site da
instituição: ¿O aluno deve permanecer na sala de aula, mesmo na troca de
períodos.¿
Às 9h, cachimbo de garrafa petO
comportamento dos estudantes mostra que não há temor de represália. A
maioria não se esconde para o consumo. Na manhã de 19 de julho, ao lado
da casa de força, quando os termômetros marcavam 5°C na Capital, três
gurias e um guri preparavam um cachimbo feito de garrafa pet. Eram 9h.
Todos
ajudavam: um esmigalhava a erva, outro fazia o cigarro artesanal, um
terceiro preparava a garrafa e o quarto fumava após acender o fogo. Em
cinco minutos, a droga estava pronta para consumo. Outros dois
estudantes foram atraídos pela movimentação. Mais de uma vez, o cigarro
apagou e eles voltaram a acender. Enquanto fumavam, se abraçavam e
faziam selfies sem ser incomodados por nenhum professor ou responsável.
Se
a droga não ultrapassa os portões da escola, os alunos a recebem pelos
muros. Um pula, e na calçada, outro alcança. Isso acontece tanto pela
Avenida Piratini, em frente à instituição, quanto na Avenida Laurindo,
em uma das vias laterais. Mas não é preciso esforço para ter acesso às
dependências do Julinho.
No último dia de aula antes das férias
de julho, a reportagem entrou na escola durante o intervalo, circulou
pelas dependências e pelo pátio sem ser abordada. No pátio dos fundos,
vários grupos fumavam maconha. Próximos a um dos muros, embaixo de uma
árvore, jovens dançavam com música alta ao lado de uma garrafa de vodca
vazia. Eram 10h30min.
"
A memória imediata do aluno vai para o espaço", diz especialistaO
consumo de qualquer droga – incluindo o álcool – compromete a
aprendizagem do adolescente e está colocando o desenvolvimento de uma
geração em xeque. É o que defende a psiquiatra e coordenadora da equipe
de dependência química da Fundação Mario Martins, Isabel Suano.
Segundo
ela, as áreas do cérebro de fixação e memória estão em amadurecimento
até os 19 anos. Com o uso de entorpecentes, o jovem aprende muito menos
do que do que poderia:
– Até esta idade, o cérebro ainda não está
pronto e o uso de qualquer substância desse tipo interfere no
aprendizado. Para poder aprender, tem que fixar e memorizar. Se ele vai
para aula sob uso de droga, a memória imediata dele vai para o espaço. O
que ele poderia aprender em dez minutos simplesmente não vai ficar na
cabeça dele. Isso sem contar que, nesta fase, o adolescente deveria
aprender a lidar com os sentimentos, exercitar a frustração, mas, ao
contrário disso, temos uma nova geração que está anestesiada.
Realidade ultrapassa portões do colégioPara
o médico psiquiatra e educador Celso Lopes de Souza, da Universidade
Federal Paulista (Unifesp), a situação enfrentada pela escola, com
consumo e venda de drogas nas suas dependências, deve ser ponto de
partida para reinvenção.
– A escola tem de se refundar. É
difícil, mas não é impossível. É preciso mostrar riscos, exemplos
claros, com muita realidade e sem ficar dourando nem colocando a droga
como o pior bicho do mundo. Têm de ser pensadas medidas para quem está
usando e para quem ainda não usou – diz Souza.
O desafio, segundo Souza, é formar jovens preparados para entender que as frustrações são passageiras.
–
Para o jovem, fazer o que seu colega está fazendo é muito importante.
Porém, precisa saber que pode discordar das ideias sem discordar da
pessoa. Quando o jovem percebe isso, é mais fácil dizer não às drogas –
diz.
O professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS) José Vicente Lima Robaina avalia que o
cenário reflete a realidade que ultrapassa as portas da escola: a
liberdade sem responsabilidade da qual os jovens desfrutam. Robaina
acredita que a maioria dos alunos que não consome deve se fortalecer e
agir por meio de campanhas, palestras e discussões.
"Adolescente é futuro novo usuário", diz delegadoApós
assistir aos vídeos feitos pelo GDI, o diretor de investigações do
Departamento Estadual do Narcotráfico (Denarc), delegado Mario Souza,
disse que as imagens não deixam dúvida de que ocorre venda de drogas no
pátio da escola.
Segundo o policial, o número de alunos fumando é
considerável e, aparentemente, o uso se de maconha é feito de formas
diferentes: cigarro, cachimbo e narguilé feito com garrafa pet.
–
Temos de nos preocupar. As escolas precisam ser blindadas. Os
traficantes vão lá porque veem o futuro do seu negócio.O objetivo do
traficante é sempre o jovem, por uma questão econômica, considera o
delegado. Por isso as escolas precisam de atenção especial.
Desde
2011, a Polícia Civil atua com a Operação Anjos da Lei no combate ao
tráfico e consumo de drogas próximo e dentro de escolas. A ação atua na
prevenção, com palestras de conscientização, e na repressão, coibindo
comercialização. Em seis anos, foram mais de 800 presos. Em 2017, 46
escolas da Capital foram monitoradas, incluindo o Julinho.
Falta de informaçãoAs
escolas de Porto Alegre são as únicas do Estado que não têm
representante nas Comissões Internas de Prevenção de Acidentes e
Violência Escolar (Cipave), que discutem e orientam ações dentro das
instituições.
Das 30 coordenadorias regionais de educação no
Estado, apenas a 1ª, que representa as escolas da Capital, não participa
do Cipave, que começou os trabalhos em julho de 2015 mas nunca
conseguiu alinhar ações com educandários da metrópole. Das 2,5 mil
escolas do RS, 2,4 mil já aderiram:
– As que faltam são as de
Porto Alegre. Não temos dados, informações e nenhum tipo de mapeamento
daqui porque as escolas não respondem nem os formulários que enviamos –
afirma a coordenadora estadual do Cipave, Luciane Manfro.
Enviado
em junho, um questionário sobre casos de tráfico, posse e uso de drogas
foi respondido por apenas 38 das 250 escolas estaduais da Capital.
– Nesse universo, foram registrados 42 casos. Mas essa é uma amostra pequena para falar da realidade.
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DENUNCIETelefone — 0800 518 518
Site —
pc.rs.gov.brE-mail — denarc-denuncia@pc.rs.gov.br
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CONTRAPONTO- O que diz a Secretaria Estadual da Educação -
Em abril, a direção do Colégio Estadual Júlio de Castilhos, em Porto
Alegre, esteve reunida com membros do Ministério Público para denunciar a
venda de drogas nas imediações da escola. No mês seguinte, um contato
foi feito com o Denarc, que ministrou palestras preventivas aos alunos —
outros dois encontros do tipo vão ocorrer na escola ainda este ano.
Sempre que é detectado o consumo e/ou venda de drogas no entorno da
escola, é feita a comunicação às autoridades policiais.
O atual
quadro de funcionários da Escola Estadual Júlio de Castilhos conta com
cinco monitores, e todos têm, entre suas atribuições, a função de
observar o pátio e demais dependências. A 1ª Coordenadoria Regional de
Educação (1ª CRE) estuda a necessidade de aumentar a quantidade de
profissionais atuando no estabelecimento.
- O que diz a diretora do Colégio Júlio de Castilhos, Fernanda Gaieski - Diretora do Colégio Júlio de Castilhos, Fernanda Gaieski não
reconhece a venda de drogas por alunos, mas admite que a escola já teve
denúncias de tráfico e que o consumo de entorpecentes é, sim, uma
realidade. Falta de professores e monitores para circular pelo pátio,
pouco controle de quem entra e sai na escola são, segundo ela, algumas
das dificuldades que a escola enfrenta.
A
reportagem fez imagens de uso e venda de drogas dentro do pátio do
Julinho. A escola tem conhecimento disso, já teve problemas?Não.
Isso, para mim, é uma novidade. Tanto é que todas as inferências que
fizemos como direção de escola, os alunos foram encaminhados — os
menores para a Polícia Civil e os maiores foram feitos boletins de
ocorrência e (
eles) foram retirados da escola. Não vejo tráfico
de drogas dentro da escola. O Denarc esteve aqui fazendo palestras e vai
dar continuidade no segundo semestre. Na investigação do Denarc aqui
dentro também não foi visualizada venda ou tráfico na escola. O que
estava acontecendo era que alunos estavam trazendo e saíam para comprar
drogas no Carandiru (
condomínio próximo à instituição) e estavam usando dentro da escola. Já identificamos esses alunos e estamos tomando as providências legais que cabem à escola.
Quando isso ocorreu?Em
maio, junho e julho, quando o Denarc esteve aqui. Tivemos a denúncia de
que tinha alunos traficando aqui dentro, aí fizemos uma investigação
como direção, identificamos os alunos e fizemos o encaminhamento. Quando
recebi o delegado do Denarc, ele nos deu todas as alternativas e nos
colocou a par de que os alunos pulavam o muro do colégio para comprar
droga no Carandiru e voltavam pulando muro de novo, o que a gente não
tem como controlar porque o Estado não nos manda monitor para o pátio. O
que temos visualizado muito é o tráfico de drogas na praça em frente à
escola. O tráfico aqui dentro, para mim, é uma novidade. A questão dos
traficantes é muito folclore, tu vais me desculpar. Já virou folclore
muito grande a imagem pública do Julinho, de que é visado por
traficante. Aqui na escola, não. Isso eu garanto.
Então a senhora acredita que é folclore existir traficantes que são alunos da escola e que vendem droga dentro da escola?Não,
estou dizendo que aumentam muito a história porque o Júlio de Castilhos
já virou folclore. Não estou dizendo que eles não existam. Posso até
ter alunos que esteja trazendo droga. Todos os casos de drogas que
identificamos aqui dentro, eram alunos novos do primeiro ano que vieram
de outros bairros como Restinga, Partenon e Lomba do Pinheiro.
Tendo em vista essa situação, é necessário monitoramento em tempo integral dos alunos?Estamos
o tempo inteiro monitorando. A gente sabe dos grupos que têm. Mas fica
difícil: ou a gente monitora alunos ou fizemos o trabalho administrativo
da escola. Estamos com 2,2 mil alunos.
Os alunos ficam tempo fora da sala de aula e espalhados nos fundos da escola. É possível controlar quem está "matando" aula?Sim,
controlamos e mandamos para aula. Temos esse controle, sim. Agora
acabei de chegar do pátio do colégio, tu me pegou no telefone por
milagre. Estamos o tempo inteiro circulando no pátio da escola. Mas é
como te disse: ou eu circulo no pátio da escola ou eu faço atividade
administrativa. E os alunos que identificamos em pontos que sejam locais
de provável uso de droga, estamos convocando os pais.
Quantos monitores para o pátio a senhora acha que seriam necessários?Pedi
um monitor de pátio. Mas eu não tenho. Nosso problema é as pessoas que
pulam o muro. Antes de sairmos de férias nós identificávamos que, todos
os dias, pessoas de fora pulavam para dentro da escola. Até que ponto é
um aluno do Júlio de Castilho que está trazendo droga? Aqui dentro tem
muitos alunos (
das escolas) do Inácio Montanha, Idelfolso Gomes, Luciana de Abreu, Protásio Alves e Emílio Massot.
O acesso a escola é realmente fácil. Um dia consegui entrar na escola, pela porta da frente e ninguém perguntou quem eu era.Quem abriu a porta para ti?
A porta estava aberta.A
porta não deveria estar aberta, começa por aí. Mas é bom saber. Quando
entra alguém, o porteiro deve identificar essa pessoa e direcioná-la
para onde ela quer ir. Existe essa falha também. Sabe como é: alguns
servidores públicos em determinados momentos. Ele (
porteiro)
deveria ter lhe parado, aberto a porta e perguntar onde a senhora iria. E
não ter deixado entrar. Não autorizamos nem que os pais subam e vão na
sala de aula dos filhos.
Esse episódio dá a entender que se eu entrei, qualquer outra pessoa entra também.Com certeza.
Os alunos ficam sem um ou dois períodos de aula, não há monitores no pátio, como vocês controlam eles?A gente controla como pode controlar, também não posso fazer milagre. Não posso transformar água em vinho. Não sou Cristo.
Como os alunos reagem quando são flagrados?É
muito difícil. Não posso revistar o aluno, não posso tocar nele, não
posso fazer nada, senão serei processada. Nem olhar a mochila. A gente
vai muito do bom senso do aluno. Os casos que peguei eu vi que eles
estavam usando droga porque cheguei na hora do uso da droga e pedi que
me acompanhassem até minha sala. Se não menores de idade, comunico os
pais.
Vi uma garrafa de vodca sendo consumida por alunos.O
que identificamos, pegamos, recolhemos. Quando vejo os alunos com copos
de café, peço pra ver e cheirar o que tem dentro. Mas eles podem não me
deixar cheirar. O mesmo com garrafa de chimarrão